domingo, 22 de março de 2009

OS 3 UMBIGOS DO SONHO


Um sujeito nunca é dizível por inteiro. Ou porque é atravessado por um enredo, uma cacofonia de vozes, imagens, falas que o constituem (o Outro), ou porque a própria ideia de sujeito tenha sido tramada previamente na interdiscursividade, enovelando o sujeito do inconsciente com o sujeito da comunidade ― vozes, palavras e figuras dos outros. Na fronteira dos múltiplos ‘eus’ internos com esses pequenos outros (‘eus’ heteronômicos), urde-se um descentramento radical: o que sou não é dado por uma essência, uma substância, nem por uma ideologia própria ou alheia; trata-se menos das vertentes da identidade, psicológica ou grupal, e mais das condições fundantes do ser ― sou a partir do que me é alheio, do indeciso ente que me sonha, daquilo que, para mim como para os outros, dorme no mistério. Espécie de tecido germinativo que dá origem ao psiquismo e cujo cordão umbilical alimenta nossa vida imaginária,

Uma obra de arte, como um sonho, nunca pode ser interpretada por inteiro. Ali onde uma representação se forma, ela nos escapa em parte. No sonho trançam as fibras do que se apresenta e do que se representa, retorta onde o inconsciente se entranha no corpo, o sonho funciona como sistema de trocas entre a noite e o dia, a biologia e a cultura, atividade e repouso, apropriação e sujeição, a vida e a morte, o sono e a vigília. O espaço onírico oscila entre estados do Eu e do não-Eu, à maneira de uma série de matriochkas que se incluíssem e excluíssem reciprocamente, como se a subjetividade, expandindo-se ao infinito, pudesse colapsar o fora da sua (oni) presença, permitindo ao objeto existir na interioridade e na distância, ao espaço conter seu negativo e ao tempo um fechamento sobre si. Na obscuridade do sonho nascem os híbridos sensação-pensamento, organismos feitos de memória-percepção-signo cujo umbigo (boca, olho, vagina, ânus) ameaça tudo devorar.

O sonho é elaborado dentro, mas tem de se fechar fora, ele só conserva sua substância com o fora. O corpo do deus Osíris flutua despedaçado sobre o Nilo, Ísis e Néftis sopram vida aos 42 pedaços, menos um, o pênis, comido por um peixe: a morte como castração final da vida, mas também como sua condição. Na dimensão mítica, só ao preço de se tornar virtual é que o falo poderá sustentar a potência fecundante, nela, o externo é convocado a completar o interno, a série se completa pela ausência, etc., etc.. Sabemos quando estamos acordados, o que nunca temos certeza é se estamos sonhando. Até onde se pode saber do sonho?

“Mesmo nos sonhos mais bem interpretados, é freqüente ter de deixar um lugar nas sombras, porque, na interpretação, percebe-se que ali há um emaranhado de pensamentos do sonho que não se deixa desenredar, mas que tampouco dá outra contribuição ao conteúdo do sonho. É o umbigo do sonho, o lugar onde ele repousa no desconhecido. Os pensamentos do sonho a que se tem acesso pela interpretação têm de permanecer, de forma geral, sem qualquer fechamento e partir em todas as direções na embaralhada rede de nosso mundo de pensamentos. De um lugar mais denso dessa rede surge o desejo do sonho como o cogumelo de seu micélio.” (Sigmund Freud).

Já neste primeiro umbigo, psicossomático, somos confrontados pelo impensável universal, material submetido ao recalque primordial, inacessível ao pensamento e à linguagem; no umbigo interpsíquico também o sentido deriva de uma formação arcaica nodal irrepresentável, nesta outra matriz onírica o campo é compartilhado, espaço onde circula um pensamento do sonho comum a vários sonhadores. Mas sabemos que os sonhos podem ultrapassar ainda este nível da telepatia grupal, do sonho coletivo: num terceiro bulbo do sonho se articulam o rito, o mito e a profecia. Os indígenas da América inventaram diversos filtros de sonhos, para deixar passar os sonhos e barrar os pesadelos, manter os mortos longe dos vivos que dormem e afastar os espíritos nocivos dos lugares de purificação e cura; p.ex., os xamãs dos Algonquinos (Canadá) instalam teias de couro amarradas em ramos curvos, com penas colocadas a intervalos regulares em torno de nós ou contas. Dos umbigos do sonho emergem os meta-níveis: como o mito que vem interpretar o sonho, mito que é o signo de uma outra língua, um signo de signo. Os índios já sabiam que são esses nós mais densos que revelam os sentidos ocultos da vida humana; para eles, os sonhos também são filtros de mitos.

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